Eu nunca passei fome


A afirmação do título do post pode ter encucado a maioria dos meus leitores, porque a maioria dos meus leitores faz parte das classes média e alta. E nesse estrato social a fome é um assunto meio distante, meio africano, meio utópico e que vez ou outra gera uma passeata em prol dos excluídos do sistema. E verdadeiramente, graças a Deus, eu nunca passei fome. Nós nunca passamos fome.

Jejum, abstinência e oração. Três palavras que são o extremo oposto dos valores veiculados hoje em dia. Três palavras que norteiam a quaresma cristã. Três palavras que assustam os miseráveis de coração. Pela quaresma ser o período de preparação para a Páscoa, essas três palavras são/devem/deveriam ser mais bem vivenciadas.

É comum a abstinência de uma coisa que signifique muito nesse tempo; o objetivo da abstinência é provar ao final dos 40 dias que você não precisa de gadgets, doces, video game para viver.

A importância da oração é a mesma de todos os outros tempos litúrgicos; é a forma de nos comunicarmos com Deus, aceitar a Divina Providência, escutar Sua voz, encontrar a nós mesmos, é nossa “união íntima e vital com Deus”. Essas atividades devem ser intensificadas para sustentar o ano que segue!

Eu achava que jejum era apenas não comer…

Faço cinco ou mais refeições diárias, no estilo ocidental de ser. Me propus a extender a vivência quaresmal nesse ponto: comer menos. Tenho plena ciência que as vezes não como por vontade/necessidade, apenas, pois, para manter o hábito.

Certo dia, tomei meu café da manhã para ir à faculdade. Me propus que não faria o lanche intermediário entre o café da manhã e o almoço (normalmente não almoço);  em previsão de que teria um dia corrido, almocei cedo para evitar filas. Previsão acertada, dia extremamente corrido sem tempo para respirar, matérias sufocantes, laboratório com problemas etc. Não comi nada pela tarde, no fim do dia estava com fome, obviamente eu estava com fome. Preferi ir para casa. Ônibus enfrentou engarrafamentos da Avenida Maracanã até a Estrada do Portela, ou seja, quase todo o percurso, levei mais de 2h30min. Eu sentia fome. Tinha biscoito na mochila, contudo preferi não comer. Essa situação de jejum forçado não me pareceu coincidência. Quem tem fome tem pressa. Dei-me conta que não mais sentia fome (quem se lembra de biologia do ensino médio deve se lembrar da função do fígado nesses casos). Isso só foi possível porque eu me alimento todos os dias, graças a Deus.

Pensei nas milhões de pessoas que passam fome, não por horas ou por um dia, mas nas pessoas que passam fome diariamente, todos os dias de suas vidas até que a doença vença sua fraqueza. Pensei nas pessoas que vivem sem dignidade, sem felicidade, sem esperança.

A essas pessoas só posso oferecer minhas orações. Pior que a fome física é a fome espiritual, falta-nos Deus, embora Ele próprio se oferça como alimento. Negamos a doação divina, sem ela nada podemos fazer para ajudar no combate à fome física.

Não que eu nunca tenha pensado nelas, dessa vez apenas compartilhei do seu sofrimento (que no meu caso seria resolvido ao chegar em casa, com um prato de comida). E essas pessoas que não tem casas com pratos de comida, como ficam? Dividir a fome com elas é apenas um passo a ser feito. Aqui a palavra fome não é só fome de comida, mas fome de tudo aquilo que dá suporte a vida! Pois ninguém deseja ao próximo aquilo que não quer a si, fome, dor, desesperança, indignidade, morte.

Não peço a nenhum de vós, leitores, que nunca mais comam nada. Apenas que reflitam sobre algumas extravagâncias que são cometidas na vida diária, como um copo d’água jogado fora. Isso para famintos é extravagante, pese pelo peso dos mais fracos

Quaresma não é regime. Também não é para fazer boas obras só nesse tempo, mas é tempo propício de começo, de mudanças -mudanças internas- de construção da vida eterna, de buscar o banquete pascal na morada do Pai.